
"…/ O quarto cheirava a amoníaco, oh não que o amoníaco, mas o amoníaco, o amoníaco. Ela sabia que era eu, pelo cheiro. O seu velho rosto pergaminhado e peludo iluminava-se, ficava contente por me cheirar. Articulava mal, com um chinfrim de dentadura, e a maior parte do tempo não dava conta do que dizia. Outro que não eu ter-se-ia perdido neste taramelar de castanholas, que não parava senão durante curtos instantes de inconsciência. Aliás eu não vinha para ouvir. Entrava em comunicação com ela dando-lhe pancadas no crânio. Uma pancada significava sim, duas não, três não sei, quatro dinheiro, cinco adeus. Tinha um trabalhão para me habituar a este código o seu entendimento arruinado, delirante, mas lá tinha conseguido. Ela confundisse sim, não, não sei e adeus era-me indiferente, eu próprio confundia. Mas que ela associasse as quatro pancadas com outra coisa que não dinheiro, eis o que era preciso obviar a todo o preço.
… /Acabei por compreender que a minha maneira de descansar, a minha atitude durante o repouso, às cavalitas na bicicleta, os braços no guiador, a cabeça nos braços, estava contra já não sei o quê, contra a ordem, contra o pudor. Indiquei modestamente as minhas moletas e ousei alguns ruídos a respeito da minha enfermidade, que me obrigava a repousar a perna como podia, em vez de como devia.
/ … da minha perna curta e hirta ...
/ ... e de súbito lembrei-me do meu nome, Molloy. Chamo-me Molloy, exclamei, num berro, Molloy, ocorreu-me agora mesmo.
/ ... E o nome de sua mãe, perguntou o comissário, devia ser um comissário. Como? Não compreendia. E a sua mãezinha? perguntou o comissário. Chama-se --, Deixe-me reflectir! gritei. Reflita, disse o comissário. Se a mamã se chamava Molloy? Sem dúvida. Ela deve chamar-se Molloy, concluí. .../
... Castigar de maneira sistemática um ser como eu, não é cómodo .../
... Pedi ao polícia que tivesse piedade de mim, que me ajudasse. Ele não compreendia patavina... /
/... Tirei de um bolso um seixo e pus-me a chupá-lo. Era liso, à força de chupado, por mim, e de rebolado, pela tempestade. Um pequeno seixo redondo e liso na boca, acalma, refresca, corta as voltas à fome, engana a sede... /
/… Aproveitei esta estadiazinha para me fornecer bem de pedrinhas para chupar. Eram calhaus é o que eram, mas eu chamo-lhes pedrinhas. Sim senhor, dessa vez armazenei uma reserva importante. Distribuí-as com equidade pelos meus quatro bolsos e chupei-as uma de cada vez. Isto criava um problema que resolvi em primeira mão da seguinte maneira. Eu tinha, suponhamos dezasseis pedras, das quais quatro em cada um dos meus bolsos que vinham a ser os dois bolsos das calças e os dois bolsos do capote. Tirando uma pedra do bolso direito do capote, e metendo-a na boca, substituía-a no bolso direito do capote por uma pedra do bolso direito das calças, a qual substituía por uma pedra do bolso esquerdo do capote, a qual substituía pela pedra que tinha na boca, assim que acabava de a chupar. Desta maneira havia sempre quatro pedras em cada um dos bolsos, porém de maneira alguma as mesmas pedras. E quando me voltava a vontade de chupar abastecia-me no bolso direito do capote, com a certeza absoluta de não ir lá buscar a mesma pedra que da última vez. E, sem deixar de chupar, tornava a arrumar as outras pedras, como acabo de explicar ... /.
Algumas linhas de págimas soltas do romance Molloy, de Samuel Beckett, 1951
Nota: Esta é a história de um personagem, misteriosamente doente e desesperadamente monologante, que personifica a solidão do homem contemporâneo e o destino de aniquilação que se fecha sobre ele. Samuel Becket foi-me ensinado a gostar por meu Amigo-ido Hernâni Baptista, Veterinário de profissão, lá para os idos anos 80. Estão na minha biblioteca Molloy e Murphy. Nunca releio Molloy sem me lembrar do modo como em voz alta e com entoação, ele nos lia página a página, enterrado no seu sofá e de pernas cruzadas, por vezes imitando o personagem de perna hirta, batendo na sua própria cabeça, levando-nos pela descrição. E como de repente, por curtos intervalos, interrompia a leitura, enxugava lágrimas de riso, de gargalhar e de falta de ar, dele e nosso, que o ouvíamos com prazer. Aproveito para atestar que este romance deve ser lido em voz alta. Dá um gozo enorme fazê-lo. E se tivermos ouvintes, então ainda melhor.
… /Acabei por compreender que a minha maneira de descansar, a minha atitude durante o repouso, às cavalitas na bicicleta, os braços no guiador, a cabeça nos braços, estava contra já não sei o quê, contra a ordem, contra o pudor. Indiquei modestamente as minhas moletas e ousei alguns ruídos a respeito da minha enfermidade, que me obrigava a repousar a perna como podia, em vez de como devia.
/ … da minha perna curta e hirta ...
/ ... e de súbito lembrei-me do meu nome, Molloy. Chamo-me Molloy, exclamei, num berro, Molloy, ocorreu-me agora mesmo.
/ ... E o nome de sua mãe, perguntou o comissário, devia ser um comissário. Como? Não compreendia. E a sua mãezinha? perguntou o comissário. Chama-se --, Deixe-me reflectir! gritei. Reflita, disse o comissário. Se a mamã se chamava Molloy? Sem dúvida. Ela deve chamar-se Molloy, concluí. .../
... Castigar de maneira sistemática um ser como eu, não é cómodo .../
... Pedi ao polícia que tivesse piedade de mim, que me ajudasse. Ele não compreendia patavina... /
/... Tirei de um bolso um seixo e pus-me a chupá-lo. Era liso, à força de chupado, por mim, e de rebolado, pela tempestade. Um pequeno seixo redondo e liso na boca, acalma, refresca, corta as voltas à fome, engana a sede... /
/… Aproveitei esta estadiazinha para me fornecer bem de pedrinhas para chupar. Eram calhaus é o que eram, mas eu chamo-lhes pedrinhas. Sim senhor, dessa vez armazenei uma reserva importante. Distribuí-as com equidade pelos meus quatro bolsos e chupei-as uma de cada vez. Isto criava um problema que resolvi em primeira mão da seguinte maneira. Eu tinha, suponhamos dezasseis pedras, das quais quatro em cada um dos meus bolsos que vinham a ser os dois bolsos das calças e os dois bolsos do capote. Tirando uma pedra do bolso direito do capote, e metendo-a na boca, substituía-a no bolso direito do capote por uma pedra do bolso direito das calças, a qual substituía por uma pedra do bolso esquerdo do capote, a qual substituía pela pedra que tinha na boca, assim que acabava de a chupar. Desta maneira havia sempre quatro pedras em cada um dos bolsos, porém de maneira alguma as mesmas pedras. E quando me voltava a vontade de chupar abastecia-me no bolso direito do capote, com a certeza absoluta de não ir lá buscar a mesma pedra que da última vez. E, sem deixar de chupar, tornava a arrumar as outras pedras, como acabo de explicar ... /.
Algumas linhas de págimas soltas do romance Molloy, de Samuel Beckett, 1951
Nota: Esta é a história de um personagem, misteriosamente doente e desesperadamente monologante, que personifica a solidão do homem contemporâneo e o destino de aniquilação que se fecha sobre ele. Samuel Becket foi-me ensinado a gostar por meu Amigo-ido Hernâni Baptista, Veterinário de profissão, lá para os idos anos 80. Estão na minha biblioteca Molloy e Murphy. Nunca releio Molloy sem me lembrar do modo como em voz alta e com entoação, ele nos lia página a página, enterrado no seu sofá e de pernas cruzadas, por vezes imitando o personagem de perna hirta, batendo na sua própria cabeça, levando-nos pela descrição. E como de repente, por curtos intervalos, interrompia a leitura, enxugava lágrimas de riso, de gargalhar e de falta de ar, dele e nosso, que o ouvíamos com prazer. Aproveito para atestar que este romance deve ser lido em voz alta. Dá um gozo enorme fazê-lo. E se tivermos ouvintes, então ainda melhor.
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